Revista NTUurbano | Out/2015

Inclusão do setor no rol de serviços essenciais ao cidadão possibilita melhorar a mobilidade em todo o território nacional, com mais recursos e possibilidade de fundos de investimentos

A sociedade brasileira acaba de obter uma importante conquista. Após passar por duas votações em cada uma das casas do Congresso Nacional, a proposta de inclusão do transporte na lista de direitos sociais da Constituição Federal foi aprovada por unanimidade. Agora, a mobilidade urbana ganha destaque no artigo 6º, ao lado de educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Na prática, a inclusão representa mais fôlego na luta por um transporte mais digno com novas possibilidades de desenvolvimento para o setor. Autora da Proposta de Emenda à Constituição, que permitiu a mudança na redação do texto (PEC 90/11), a deputada Luiza Erundina (PSB-SP) comemora a vitória. Para ela, esse era o empurrão que faltava para que os problemas de mobilidade começassem a receber a atenção necessária. “A definição do transporte como um direito social pela Constituição Federal obriga o Estado a garantir esse serviço a todos os cidadãos brasileiros. Significa, portanto, uma conquista importante, sobretudo para aqueles que dependem do transporte coletivo para ter acesso aos outros direitos sociais”, afirma a parlamentar, que buscou na experiência como prefeita de São Paulo, entre 1989 e 1993, o estímulo para sugerir a pauta.

No comando de uma cidade que, à época, tinha 12 milhões de habitantes, e de uma região metropolitana com mais de 20 milhões de pessoas, ela não conseguiu se manter alheia às dificuldades de locomoção. “Convivi com o grave problema da mobilidade, que sacrifica os trabalhadores e prejudica o funcionamento da cidade, penalizando o conjunto da população paulistana”, relembra Erundina, que, como deputada federal, viu a oportunidade de mudar esse cenário, não apenas no Estado de São Paulo, mas em todo o território brasileiro.

 

Mais investimentos

A falta de investimentos está entre as principais queixas quando o assunto é transporte. Na época em que atuou no Executivo, Luiza Erundina diz ter enfrentado problemas para atender de forma satisfatória as demandas do setor. Agora, como direito social resguardado pela Constituição Federal, o transporte ocupará espaço também na partilha do bolo. Ou seja, a partir de agora, a União terá o dever de incluir o segmento no orçamento anual. Dessa forma, a mudança não ficará apenas no papel. Daqui para frente, o poder público deverá elaborar novas políticas públicas de transporte, “sobretudo no nível dos municípios, com a criação de mecanismos de financiamento do serviço de modo que os custos não recaiam exclusivamente sobre os passageiros”, observa Erundina. “Assim, haverá melhoria do transporte coletivo, e não apenas público, cabe ressaltar, com mais qualidade e eficiência”, completa.

Para o deputado Júlio Lopes, presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano (CDU)  da Câmara dos Deputados, na medida em que as cidades cresceram, o direito de ir e vir precisa ser complementado pelo direito de usar o transporte público. “O que estamos fazendo é dotar esse transporte de mais capacidade e criar um fundo nacional em que

os Estados e Municípios possam ser indenizados pelas gratuidades. A gente sabe que sempre o usuário final que paga a conta. Por essa razão, a gente precisa prover os estados e municípios de mais capacidade de investimentos no setor urbano e assim melhorar a mobilidade urbana”.

O presidente-executivo da NTU, Otávio Cunha, concorda. Para ele, a inclusão do transporte como direito social representa uma chance real de mudar a realidade do setor a partir da raiz. “É preciso criar fundos nacionais para o setor. Hoje, a obrigação de alocar esses recursos é dos municípios, que, em geral, têm a limitação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Agora, o governo terá de incluir o transporte no orçamento da União”, ressalta.

 

O público e o privado, juntos

A PEC 90/11 veio somar à Lei Federal 12.587/2012, mais conhecida como Lei da Mobilidade Urbana, que traz instrumentos fundamentais para garantir a sustentabilidade e a eficiência nos deslocamentos. Essa é a avaliação do presidente da NTU, Otávio Cunha. De acordo com o dirigente, a classificação do transporte como direito social trará os recursos que faltam.

Mas, apesar de celebrar a responsabilidade conferida ao Estado com a inclusão do transporte na relação de direitos sociais, Otávio Cunha destaca, por outro lado, a necessidade de um incentivo à participação da iniciativa privada. Como representante das empresas de transporte coletivo, o dirigente reconhece o que vem sendo feito, com investimentos em infraestrutura pelo poder público e em novas tecnologias por parte dos empresários. No entanto, ele aponta a urgência da criação de políticas públicas inovadoras e de fundos nacionais que viabilizem o desenvolvimento.

“A iniciativa privada já tem respondido positivamente às demandas por projetos na área de mobilidade, com a construção e manutenção de corredores exclusivos e a compra de ônibus articulados e biarticulados, por exemplo. À medida que tivermos vontade política recursos para elaboração de bons projetos, veremos uma mudança efetiva na matriz da mobilidade. E quando os cidadãos perceberem a melhoria, será maior a possibilidade de migração do transporte individual para o coletivo”, garante o presidente da NTU.

 

Clamor popular

Protocolada em 2011, a PEC 90 ficou em banho-maria durante um tempo, até ganhar força total em 2013 com as manifestações populares em várias partes do país contra o aumento da tarifa do transporte público. No centro dos holofotes, a proposta foi adiante e não enfrentou grandes resistências no Legislativo. Além disso, conquistou, naturalmente, o apoio dos mais diversos segmentos da sociedade.

O advogado Romulo Nagib, membro da Comissão de Assuntos Constitucionais da OAB-DF (Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Distrito Federal), considera a emenda um ganho para a sociedade. “Ela insere o transporte como um autêntico direito fundamental do cidadão, e os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição são importantes na medida em que consolidam uma democracia social efetiva”, avalia.

Mas, para o advogado, a insuficiência de recursos do poder público é um dos grandes entraves para o atendimento pleno ao direito de acesso ao transporte. “Infelizmente, nós vivemos num país onde os recursos do governo, a quem incumbe a promoção desses direitos, são escassos. Assim, essa dependência de recursos econômicos faz com que os

Direitos sociais previstos na Constituição sejam normas programáticas, ou seja, dependam de formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis”, explica Nagib.

Gestão inteligente, arrecadação e uma economia em crescimento são alguns dos fatores essenciais para que as políticas públicas sejam desenvolvidas e executadas. Caso o dever de fornecer o serviço seja descumprido, é possível buscar a Justiça.

Compatíveis com o interesse coletivo ou difuso, os direitos sociais podem gerar uma ação civil pública, pois a Constituição os resguarda. Mas não para por aí. “Quando o transporte for essencial para que determinado indivíduo faça um tratamento de saúde, por exemplo, existe a possibilidade de que o cidadão, individualmente, ingresse com uma ação cobrando do Estado a prestação do direito social suprimido”, afirma o advogado.

 

Expectativas

De acordo com levantamento da NTU, atualmente, há 700 projetos relacionados à mobilidade urbana em execução por todo o país, como corredores e faixas exclusivas, metrô, etc. Todos com tempos variados de execução, entre médios (3 a 4 anos) e longos prazos (10 a 15 anos). Com a nova emenda, a expectativa da entidade é que, nos próximos 10 anos, o cenário do transporte no Brasil mude significativamente, com mais projetos. “Hoje em dia o veículo individual ocupa 70% das vias urbanas. Está na hora de inverter esse quadro e priorizar o transporte público. Acredito que, com investimentos e o bom funcionamento da mobilidade, as pessoas tenderão a deixar seus carros em casa. Mesmo porque, como haverá recursos, os custos do serviço não recairão somente sobre a população. Assim, com tarifas menores e serviços melhores, a lógica voltada ao transporte individual se inverterá. E toda vez que um cidadão consegue se locomover bem, toda a economia ganha. Não apenas uma pessoa, isoladamente, mas todo o setor econômico”, diz Otávio Cunha.

 

Fundo Orçamentário para o Transporte

A criação de um fundo específico para garantir recursos direcionados ao setor de ônibus urbano foi a sugestão levada pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) à Comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados em audiência pública realizada em 30 de setembro. A proposta foi anunciada pelo presidente executivo da Associação, Otávio Cunha, convidado a discutir formas de implementação de faixas e corredores exclusivos para ônibus urbanos.

Depois de expor a situação do segmento, no atual cenário de crise econômica do país, com acentuada queda de demanda de passageiros e descontinuidade de investimentos por parte do poder público, Otávio Cunha lançou a proposta como forma de assegurar uma das principais demandas do setor, que defende medidas urgentes de priorização ao coletivo urbano.

Na avaliação do presidente da NTU, somente com recursos próprios, assegurados por rubrica específica no orçamento da União, será possível manter o nível de investimentos necessários para a construção de mais corredores e faixas exclusivas de ônibus e suprir outras necessidades do segmento. “Precisamos colocar na pauta do governo federal a necessidade de priorizar o transporte público”, frisou, e também que recursos da Cide Combustíveis (Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico) sejam utilizados para subsidiar investimentos em mobilidade urbana.

Durante a explanação, Cunha destacou ainda a urgência do setor por medidas de baixo custo e retorno rápido. E como exemplo de inciativas com esse perfil, listou os benefícios das faixas exclusivas de ônibus, como vem ocorrendo em São Paulo. “Foram mais de 400 km de faixas implantadas no ano passado, com ganho de tempo nas viagens”, destacou.

 

Consenso

As medidas propostas pela NTU foram bem recebidas pelo presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano, o deputado Júlio Lopes (PP/RJ). O parlamentar anunciou que vai incluir no livro de recomendações aos municípios que os gestores públicos tenham acesso ao guia para implantação de faixas exclusivas de ônibus elaborado pela Associação. Lopes também é sensível à criação de recursos vinculados para o setor. “A falta de subsídios ao transporte público contribuiu para a perda de mobilidade urbana nesses anos todos”, reconhece.

Os benefícios de investimentos em faixas seletivas e corredores para BRT também foram destacados na exposição feita pelo secretário nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana do Ministério das Cidades, Dario Rais Lopes. “A busca de novas fontes para financiamentos da infraestrutura de mobilidade urbana está entre os desafios que temos para viabilizar esses investimentos”, destacou o secretário, que também se mostrou favorável à utilização de recursos da Cide Combustíveis para a mobilidade urbana.