Neste ano, esta é a segunda homenagem que o povo de São Paulo me presta e que se revestem de um significado que transcende, em muito, meus méritos pessoais.

A primeira, foi a Medalha “São Paulo Apóstolo” que resultou de uma votação, pela internet, promovida pela Arquidiocese de São Paulo, e entregue por Sua Eminência Reverendíssima Cardeal Odilo Pedro Scherer a mim e a outros ilustres homenageados em ato solene realizado no dia 25 de agosto de 2015.

A segunda, é este Prêmio de Direitos Humanos “Dom Paulo Evaristo Arns”, concedido pela municipalidade de São Paulo e que tenho a honra de receber pelas mãos de Sua Excelência o Prefeito Fernando Haddad nesta solenidade que conta com as presenças de tantas pessoas importantes e muito queridas, conferindo mais prestígio e significado ao gesto generoso dos paulistanos em meu favor.

Ambas as homenagens, carregadas de simbolismo, são excelentes oportunidades para que eu expresse minha profunda gratidão a São Paulo pelo muito que esta cidade tem feito por mim, por meus irmãos(ãs) nordestinos, pelos migrantes do mundo inteiro, que para aqui acorrem em busca de sobrevivência, de trabalho, de realização pessoal e profissional…, enfim, em busca de felicidade.

São Paulo me acolheu quarenta e cinco anos atrás, com a magnanimidade que lhe é peculiar, mas, ao mesmo tempo, lançando desafios de quem tem a vocação de ir na frente, para construir, no presente, seu próprio futuro, do qual depende o futuro da nação. São Paulo faz isso com o arrojo provocado pelo lema que a inspira: “Non ducor, duco!”. Idêntica ousadia a cidade exige de cada um dos seus cidadãos e cidadãs que aqui nasceram ou que para cá vieram.

Desde que aqui cheguei, me dei conta de que teria de ser forte se quisesse sobreviver aos embates que se travam quotidianamente dentro e fora de suas fronteiras. Também entendi que esta era a contrapartida que eu teria que dar pelas oportunidades que a cidade me propiciava.
Lembro-me bem quando aqui desembarquei, no dia 28 de janeiro de 1971, portanto há quase 45 anos. É como se fosse hoje.

A sensação mais forte que experimentei, ao pisar seu chão e ao percorrer suas ruas e avenidas, era de alguém muito estranha e terrivelmente só. Ao mesmo tempo, me sentia invadida pelas mensagens sem conta dos anúncios luminosos, se chocando com as imagens e sons trazidos na memória e misturados à saudade sem fim dos que deixara lá longe.

Até lembranças da infância afloravam aos borbotões, me atordoando e me trazendo de volta um passado distante como aquela noite em que, ainda muito criança, vi luz elétrica pela primeira vez. Levei um tempo para me adaptar ao ritmo do dinamismo desta gigantesca cidade. Hoje, não sei viver noutro lugar, depois de ter transplantado minhas raízes no solo fértil desta megalópole.

Diferentemente de quando aqui cheguei, é aqui que me sinto em casa e para onde tenho pressa de voltar.

São Paulo mudou muito nessas últimas quatro décadas. Já está muito longe o tempo em que o frio intenso dos seus dias de garoa fazia o tormento dos que aqui chegavam e eram obrigados a se amontoar nas favelas e cortiços que, infelizmente, ainda hoje são a parte triste e feia do cenário da cidade.

Contrastando com isso, crescem parques e áreas verdes, revelando o despertar da consciência ecológica da sua gente e a descoberta da natureza como o dom maior de Deus à humanidade.

Sabe outra coisa que em São Paulo me encanta? É a variedade de raças, de culturas, de tipos humanos que formam seu povo, o povo paulistano, cuja ousadia levou a que, vinte e sete anos atrás, elegesse a primeira mulher prefeita da maior cidade brasileira, terceira maior cidade do mundo.

O inusitado acontecera. O imprevisível é algo que às vezes ocorre na história e na política, para surpresa e desgosto dos que se imaginam detentores exclusivos do controle dos processos de disputa de poder e veem as rédeas escaparem de suas mãos.

Quem imaginaria que a capital do Estado mais poderoso do país elegeria uma mulher nordestina, de origem humilde e de esquerda para governá-la, quando nem mesmo o seu partido acreditava na viabilidade eleitoral da sua candidata e, muito menos, na sua capacidade político-administrativa. Os dirigentes partidários não queriam, certamente, se arriscar a perder mais uma eleição ou esperavam, pelo menos, não se sair muito mal eleitoralmente. Inclusive, um companheiro, insatisfeito com o resultado da prévia interna do partido, que me escolheu candidata, comentou desalentado: “Que pena, com essa candidatura a esquerda vê comprometido o seu projeto de poder”, projeto esse que, segundo ele, se viabilizaria com o candidato derrotado na prévia. Esta foi a forma como me receberam após a vitória naquela disputa do partido.

Seguindo a lógica e a cultura da política tradicional, a preferência dos dirigentes recaía sobre um candidato homem, paulista, de classe social diferente da que pertencia a candidata escolhida pelas bases, e com uma história de militância política respeitável, ou seja, com perfil mais assimilável eleitoralmente, sobretudo pela classe média. Os fenômenos históricos, porém, sobretudo os relacionados à dinâmica do processo político-eleitoral, nem sempre seguem essa lógica.
O fato é que o imprevisível aconteceu nas eleições de 15 de novembro de 1988, quando os paulistanos elegeram uma nordestina, paraibana de Uiraúna, sua prefeita. Antes mesmo do fechamento das urnas, pessoas perplexas e assustadas se perguntavam:

– “Quem é essa mulher esquisita que entende a linguagem do povo?”

Outro indagava:

– “De onde veio essa nordestina que está levantando a periferia de São Paulo?”
Mais um acrescentava:

– “Como segurar essa desaforada subversiva que ameaça vencer as eleições e incendiar a cidade?”

Para conferir essas manifestações de intolerância, é só pesquisar nos jornais da época. Mulher, nordestina, pobre, de esquerda… Só faltava ser negra para completar e seria bom, pois teria mais uma causa pela qual lutar.

Os dados e informações que passaram a ser divulgados sobre minha origem e trajetória política contribuíram para aumentar ainda mais o medo e a insegurança da elite paulistana que, destilando ódio e preconceito, alertava aos de sua classe: “Cuidado, hein, agora vão acampar até no quintal da sua casa”.
Passado o susto das primeiras horas, fui me dando conta do inusitado e do tamanho enorme da minha responsabilidade, e então me veio a ideia de voltar às minhas origens para beber na fonte e renovar o compromisso com o meu povo que é o mesmo que vive lá e cá, fugindo da seca e da perseguição do latifúndio. Desde então me tornei paulista no Nordeste e nordestina em São Paulo, o que é um grande privilégio.

O resto dessa história vocês já conhecem. Permiti-me abusar da sua paciência, com esse discurso longo, pelo que peço desculpas, para dizer o quanto esta homenagem me comove e reiterar minha profunda gratidão por receber um Prêmio que leva o nome do nosso amado Pastor e iluminado profeta da Esperança e dos Direitos Humanos – Dom Paulo Evaristo Arns – a quem muito devo pela sua confiança e decisivo apoio nos momentos de grandes dificuldades que enfrentei na condução dos destinos desta extraordinária e gigantesca cidade que é São Paulo.

Divido esse Prêmio com todos(as) os que lutam pelos Direitos Humanos no Brasil e com os que, neste grave e preocupante momento da vida do nosso país, não se deixam abater pelo desânimo e o desalento que paralisam e inibem iniciativas e ações coletivas para a superação da crise e capazes de estimular mobilização, participação e de promover mudanças.

Concluo com a lição do querido mestre Dom Paulo Evaristo Arns que nos ensina a: “de esperança em esperança, ter esperança sempre”, em perfeita sintonia com o que nos orienta o inspirado Papa Francisco: “Não perdermos nunca a esperança” e, mais que isso, “sermos portadores de esperança”.

Por fim, reitero minha gratidão ao povo de São Paulo por esta comovente homenagem, na pessoa do nosso caríssimo prefeito Fernando Haddad, lembrando que nesta fantástica cidade existem as melhores condições para se construir uma sociedade solidária, sem preconceitos nem discriminações e onde a fraternidade seja a base das relações humanas.

Antecipando meus cumprimentos de fim de ano, desejo a todos(as) um Santo Natal e votos de que as comemorações que marcam o nascimento do Deus-menino se transformem no mais veemente apelo a nos empenharmos na preservação e consolidação da democracia no Brasil e pela paz para todas as nações do mundo.